Reflexões Planetárias

Friday, November 23, 2007

Para uma história do (in)conforto em Portugal II

Retomo a reflexão sobre a história do (in)conforto em Portugal, no convencimento de que a compreensão do passado alicerça o conhecimento do presente e este a construção do futuro.
É sobre o tradicional inconforto que pretendo insistir, partindo da preciosa síntese sobre a varanda beirã que encontramos na Arquitectura Popular em Portugal e que resulta do trabalho de campo da equipa da Zona 3 que incluía o motor do inquérito, Francisco Keil do Amaral, bem como Huertas Lobo e João José Malato:

“Expor-se aos raios do sol, ao afago do seu calor sem preço, constitui(...)a melhor das defesas, e as varandas bem orientadas são os elementos arquitectónicos mais adequados ao efeito, que o beirão concebeu e constroi(...)
"Sempre que possível orientam-nas a sul-poente. É o sector que mais horas de sol quente recebe por dia, no Inverno, e também o mais abrigado dos ventos dominantes. E se o casario vizinho não permite a exposição usual, orientam-nas para o sul ou sul-nascente, ou nascente, mas nunca para o norte."
"Nestes espaços que participam simultaneamente do interior e do exterior das casas, costura-se, faz-se meia, secam-se as roupas lavadas e alguns frutos, guardam-se abóboras, passa-se o tempo e espera-se a morte, quando a idade e a invalidez já não deixam participar nas tarefas úteis(...)"
"Se os donos das casas têm algumas posses e um desejo correspondente de diminuir o desconforto habitual, equipam-nas com envidraçados, por onde o sol penetra mas os ventos não entram(...)"
"Acabam por se tornar as dependências de maior permanência e utilidade – as mais adequadas portanto ás condições climatéricas(...)
Atingem por vezes dimensões enormes e impõem-se pela extensão e pelo ritmo da caixilharia(...)"
"A sua generalização constitui, porventura, a maior contribuição do século XIX para a valorização da arquitectura regional beirã.”

No que respeita ao conforto térmico, a contribuição destas varandas envidraçadas terá sido relativa e localizada, o que já não era pouco! Faltava-lhe o complemento dos isolamentos e vedações de que hoje dispomos para reduzir as perdas de calor, bem como o conhecimento sobre o comportamento dos edifícios que era então muito incoerente.(*)

Esta incoerência nas relações da arquitectura com o clima perturba bastante a equipa de Keil do Amaral que é muito crítica na síntese que faz sobre a adaptação climática da casa beirã, ao dizer, por exemplo que "Certos cuidados são a tal ponto neutralizados por aparentes descuidos, que se chega a recear atribuir-lhes propósitos específicos, raciocinados."
Parece-me que Keil do Amaral esperava mais da arquitectura popular, quando fez o apelo para “Uma Iniciativa Necessária”, publicado em 1947 no nº 14 da velha revista Arquitectura, no qual lança a ideia do inquérito à arquitectura popular que virá a ser concretizado e dará lugar à “Arquitectura Popular em Portugal”.

Meio século antes, também Antero de Figueiredo se mostrara crítico nas suas "Recordações e viagens", acerca da adaptação climática da casa minhota ao falar sobre a varanda de "Uma casa minhota" em comparação com o que acontecia em França:
"Afora esta expressão de nobreza, a varanda exposta ao sul, que em França se chamaria um grande balcão, uma galeria e que, a bem dizer, é um terraço coberto, tem ainda outra função e esta capital como higiene: é um depósito de sol. No Inverno, é o lugar mais quente da casa e onde se pode trabalhar ao ar livre; e nas tardes curtas de Dezembro, quando o sol anda baixo, ele entra rasteiro até ao fundo dos quartos, aquece-os, areja-os e alegra-os. Pois este tipo de casa que no norte de Portugal está inteiramente abandonado, é na França e na Suíça a última palavra da construção: não há casa, rica ou pobre que não tenha o seu terraço, a sua varanda ou simples balcão exposto ao sul quente, luminoso e sadio, para onde o homem do norte se vira como planta para a luz."

Antero de Figueiredo descreve bem o comportamento solar da varanda no Inverno, mas não toca nas varandas envidraçadas que, aliás, são mais a excepção do que a regra na recolha feita pela equipa do Arq. Fernando Távora que tratou da zona 1 do Inquérito que temos vindo a citar.
Antero exalta a França e a Suíça, mas ignora a formidável mancha de varandas envidraçadas que estava ali tão próxima do Minho, na Galiza e em que se impunham já as Galerias da Mariña, na Coruña como a sua mais bela expressão urbana que transparece na imagem.


Antero demora-se no comportamento da varanda exposta a sul como forma de ganhar o sol no Inverno, mas não considera a vantagem desta exposição no Verão, uma dupla qualidade reconhecida há 2500 anos nas casas tipo megaron com o pórtico aberto a sul. Dizia Sócrates a Aristipe, segundo Xenofonte no Memorabilia: "Não é um prazer ter uma casa fresca no Verão e quente no Inverno? E não é isto verdadeiro para as casas expostas a sul porque os raios solares penetram fundo nas casas no Inverno, enquanto que no Verão passam por cima das nossas cabeças e dos telhados?".

As incoerências de Antero e as que ele e outros apontam na arquitectura popular levam-nos de novo ao entendimento que Orlando Ribeiro tinha das relações entre a nossa tradicional frugalidade térmica, as nossas limitações tecnicas e a permissividade do nosso clima:
“Suportável na rua e no campo, agradável ao sol abrigado, o Inverno é duro no interior das habitações, onde o frio se acumula e permanece: mal aquecidas por falta de lenha, mas também porque a raridade do frio intenso não torna indispensável esta defesa. Assim, enquanto o Inverno na Europa média convida a uma intimidade no interior, o frio vence-se aqui apanhando sol ou aquecendo por um rápido passeio a pé”."
Há pobreza de meios técnicos e económicos sem dúvida.
Mas quanto ás limitações económicas temos que recordar o que comentavam observadores estranjeiros que passaram por Portugal como o aventureiro milanez Giuzeppe Gorani que por cá passou em meados do século XVIII. Nas casas que visitou e que não deveriam ser modestas, "não havia mais chaminés do que a da cozinha. No Inverno, um brazeiro e um bom capote substituíam os fogões de parede.”

... O que nos leva a pensar que há mais do que pobreza de meios na nossa frugalidade térmica. Uma espécie de resignação religiosa perante Deus e as forças da Natureza, conduzia os nossos antepassados a sofrer pacificamente as inclemências do tempo, com aquela humildade chã exaltada nos frades capuchinhos, mergulhados no frio e na humidade telúrica da encosta norte da serra de Sintra, confortados apenas pela cortiça e pelo calor da fé. Com esta imagem se despedem de nós.


Estou a dizer que o conforto assenta em bases materiais, mas que as aderências psíquicas e culturais, ontem como hoje, são decisivas.

(*) A frugalidade térmica é patente e bem compreensivel à luz dos conhecimentos tecnico-científicos hoje integrados na arquitectura bioclimática:
Estamos no Inverno. As perdas de calor por infiltração pelas frinchas das janelas, do soalho e pela cobertura, amiúde de telha vã, e por condução também pelas paredes, porventura espessas mas feitas de um material muito condutor com o granito, não poderiam ser compensadas pelos ganhos solares de uma boa varanda envidraçada virada a sul que também não chegariam para aquecer sensivelmente a grande massa térmica das paredes. Afora o aconchego da varanda nas horas de sol, a casa tenderia a aproximar-se da média das temperaturas exteriores, mais de 10ºC abaixo do que hoje se considera uma temperatura minimamente confortável! Apenas a palha no sotão, o calor das pessoas em quartos exíguos, o bafo do gado na cave e o fogo na lareira podiam atenuar o inconforto. O fogo, mais por efeito da radiação directa para quem se metia lá dentro, protegido pelas costas do escano da corrente de ar frio puxado pela fuga. Ou então prescindia-se da fuga para beneficiar do ar enfumarado mas quente que se espalhava pela cozinha antes de escapar pela cobertura enegrecendo asnas, varas e ripado. Entre a qualidade do ar e o calor, optava-se pelo calor.

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