Reflexões Planetárias

Tuesday, January 22, 2008

Fabrica & ratiocinatio(*)

Os arquitectos portugueses vivem hoje uma situação de fronteira particularmente delicada, mas também estimulante.

O seu esforço de afirmação implica desde logo a definição do seu campo de actuação, na divisão do trabalho entre todos os que concebem e constroiem o ambiente em que vivemos... o que hoje não é fácil, visto que a arquitectura não é uma actividade especializada saída da sociedade industrial.

Não ficaremos, no entanto, à espera de uma definição para praticarmos depois. Nem se trata necessáriamente de escolher uma especialidade. Por exemplo a de “cenógrafos”, cuja arquitectura teria a impressionante concorrência dos “mass-média” e das novas tecnologias.

É um desafio que, a meu ver, se aceitará no diálogo entre a teoria e a prática, com os outros especialistas, com os clientes, cidadãos e instituições sociais que conosco convivem na nossa actividade profissional.

Neste sentido, uma contribuição específica será a de encontrar formas de pôr o progresso tecnico-científico ao serviço do homem (do “homenzinho” de A. Aalto), usando mais os conhecimentos do que os equipamentos. Não se trata de apenas respeitarmos normas e regulamentos técnicos que condicionam a criatividade, para se satisfazerem níveis de conforto, níveis de segurança ou limites de consumo, ou de esconder, integrar ou exibir a panóplia técnica. Trata-se de criar um ambiente edificado em que dê gosto viver, com os recursos disponíveis, combinando meios passivos com sistemas activos.

Para isso, o arquitecto tem que se entender com a técnica. Ora parece-me que o principal obstáculo a esse entendimento reside, do lado dos arquitectos, no formalismo visualista predominante, além do mais impermeável e mesmo avesso ao convívio com o método científico.
“Chi e buono pittore e buon prospettico, dunque sara buon architetto", afirmava Andrea Pozzo em seiscentos.

O Prof. Augusto Brandão, meu professor de Teoria da Arquitectura, então muito influente no curso e autor projecto da escola de arquitectura na Ajuda, dizia que os espaços e formas da arquitectura “só se distinguem das formas escultóricas por conterem interioridades” ligadas a sentídos simbólicos e abstratos (Jornal dos Arquitectos, 1987). Esta definição que creio muito vulgarizada, isola a arquitectura da tectónica e da vida.

Da tectónica. Na Idade Média os mestres arquitectos e os seus companheiros, conciliavam no empirismo dos estaleiros, o espiritual e o material, o impulso ascencional para Deus e o impulso lateral do vento no cavername invertido, cada vez mais esbelto das catedrais, escorado por arcos botantes.

O corte faz-se na Renascença. Serve de exemplo o modo como os arquitectos formalistas pegaram na cúpula, tal como é comentado por Frank Loyd Wright (Mon Autobiographie, Librairie Plon, Paris 1955). Significativamente, é um escultor enorme, Miguel Ângelo que, aos setenta e dois anos, concebe a cúpula de S. Pedro, no centro de um polo de poder espiritual e temporal do seu tempo. Essa grande mitra de pedra não remata o jogo de volumes segundo as linhas de força como em Santa Sofia,mas empertiga-se sobre colunas-andas.

É uma falsa cúpula cujas fendas teriam tirado muitas horas de sono ao grande escultor, até que foi cintada por fortes correntes de ferro, grossas como braços, na eminência da derrocada.
Uma abstração, um símbolo de poder que domina a Cidade Eterna a sessenta metros de altura... acorrentado!
Esta forma forçada, com as suas correntes escondidas na alvenaria assimiladas como “aneis de tração” fez caminho, irradiou pela Europa. Sir Christopher Wren dizia que as correntes eram dispensáveis mas... deixou-as ficar, à cautela na St. Paul´s Cathedral! E passou para o Novo Mundo, como símbolo da democracia. A arte do ferreiro alastrou-se mesmo a toda a cúpula, em cúpulas integralmente feitas de ferro, com na Catedral de Notre Dame de La Brousse, oferecida ao seu povo “sur ses deniers” por Houphouët-Boigny, Presidente da República da Costa do Marfim!

Enfim! Passemos agora ao corte com a vida.
Não é verdade que nas “interioridades” da arquitectura vivem homens e mulheres, pessoas que não têm só olhos, nem vivem para o Belo como quem vive para Deus?

Entre as escadas de Escher e, por exemplo,as escadinhas de São Cristóvão na Mouraria de Lisboa, existe uma grande diferença: é que as de Escher foram desenhadas para percorrer com o olhar e as de São Cristóvão foram feitas para subir e descer não só, nem sobretudo com os olhos, mas com as pernas, os músculos, com todo o corpo.

E que experimentamos quando nos refugiamos na vetusta e maciça igreja de uma ruidosa e poluída rua da capital, numa cálida e vibrante tarde de verão? Sentimos a penúmbra ferida pelo clarão do zimbório; o silêncio marcado pelos sons isolados desdobrados nas lentas reflexões das superfícies pétreas; o fresco, oh sim, o fresco “armazenado” naquela enorme massa de construção, o cheiro a incenso. Sentamo-nos e saboreamos aquele encontro de sensações que se transmuta num estado de bem-estar indizível, quasi sublime, mas que pouco tem a ver com uma ordem canónica aprendida de Alberti ou Palladio, ou qualquer outro jogo de semiótica visual!

Uma arquitectura “orgânica” em que a experiência visual se integre numa experiência multisensorial do mundo à nossa volta, é muito capaz de quebrar o isolamento da arquitectura em relação à técnica. É uma das suas capacidades entre as quais avulta a de quebrar um outro isolamento mais profundo. O isolamento de paradigmas da arquitectura moderna em relação ao ambiente da nossa vida quotidiana que pouco tem a ver com os espaços desertos, estáticos, mergulhados num clima ideal e numa luz exata, plasmados no “meio etéreo” do papel vegetal ou "couchée", ou no meio electrónico dos computadores.

Não tenho a concepção optimista de que os graves problemas de ambiente que hoje sentimos, têm soluções meramente técnicas. Mas penso que elas passam, na arquitectura, por uma abertura conceptual apoiada na experiência reflectida, em interacção com as humanidades e as ciências aplicadas aos sistemas de habitar. Tal implica o apuramento de métodos de desenho que permitam o livre jogo entre programas complexos, sínteses formais e a sua realização, com a participação atempada de especialistas e a utilização de meios informáticos amigáveis, interactivos e fiáveis, no quadro de uma interdependência entre a prática e a teoria. Como disse Vitruvius Pollio: Fabrica & ratiocinatio.

(*) Excerto de um artigo na gaveta desde 1989

Wednesday, January 09, 2008

Um arquitecto que não projectou com o clima

Refiro-me a Mies van der Rohe e ao Seagram Building, desenhado em 1954. Incluio no final desta reflexão, a título de comparação, a parede-cortina do edificio Jespersen desenhado na mesma altura (1955) por Arne Jacobsen.
O Seagram Building é uma grande obra de Mies reconhecida pelos seus pares e, por ele próprio como a sua obra prima. Um paradigma da arquitectura moderna, mais precisamente: do "international style" que agora ganha status em Portugal.
O corpo principal impõe-se na forma pura de um paralelipípedo enorme e cristalino, visto da Praça, um vácuo criado pelo seu recuo no lote para o exaltar. É significativo que Mies tenha dificultado a permanência das pessoas na praça para não prejudicar a pureza da arquitectura evitando, por exemplo, o murete na bordadura do lago porque poderia ser utilizado como um convidativo banco à beira de água.
Com o mesmo propósito de controlar, disciplinar as pessoas, neste caso em nome da composição da fachada, Mies fixou o movimento dos inevitáveis estores interiores, em três posições: aberto, fechado e a meia altura.
É precisamente a fachada, o pormenor desta fachada que despertou a minha curiosidade, aguçada pela análise da fachada corrente do Instituto Nacional de Pensões de Aalto.
A fachada do Seagram é bela de vêr! A sua linguagem estrutural minimalista traduz à letra o anseio estético de Mies, tão bem expresso nestas palavras citadas por Martin Pawley:
“Skyscrapers reveal their bold structural pattern during construction. Only then does the gigantic steel web seem impressive. When the outer walls are put in place, the structural system, which is the basis of all artistic design, is hidden by a chaos of meaningless and trivial forms...Instead of trying to solve old problems with these old forms we should develop new forms from the very nature of the new problems. We can see the new structural principles most clearly when we use glass in place of the outer walls, which is feasible today since in a skeleton building these outer walls do not carry weight. The use of glass imposes new solutions."


"Less is more". Estética minimalista bem legível na magreza do detalhe, em que tudo é reduzido a expressão mais simples da estrutura metálica. Leveza e transparência. Soliditas e venustas!

Não tão simples e verdadeira como desejaria Mies, porque teve que recobrir a estrutura e dobrá-la com perfis exteriores decorativos, para cumprir as disposições de segurança contra incêndio. Então o corte pelo cunhal é claríssimo! O vidro passa pela frente de tudo, reduzindo a leitura aparente do cunhal forrado de bronze e adornado com dois perfis decorativos.
"Deus está nos detalhes". Mas a natureza do clima onde está? Em parte nenhuma. Tudo isto não tem literalmente nada a ver com o clima algo extremado de N. Y., um indesejado mas incontornável circunstante que, se não pode ser ignorado, tem que ser combatido... com máquinas para que o edifício seja habitável sem violar o imperativo estético minimalista.
Na magra geometria do corte não há lugar para isolamentos térmicos, muito menos, claro, para correcção de pontes térmicas. A única referência especial ao clima é a inclusão de uma calha invisível para receber a água condensada na caixa de ar entre os paineis metálicos e a verga estrutural.
Os enormes envidraçados são de vidro simples de 1/4". Colorido,"whisky brown", para dar à fachada um tom quente e, presumo, para reduzir a carga térmica devida à incidência da radiação solar na grande superficie envidraçada, em prejuizo da iluminação natural.
Mas que importa? Num alto e espesso edifício de serviços como este, mais comandado pelas cargas internas do que pela envolvente, não podemos sequer abrir as janelas por causa do vento: estamos condenados a viver mergulhados num morno ambiente de aquário, controlado por instalações de AVAC (aquecimento, ventilação, ar condicionado)e de iluminação artificial. Falta provar se a fachada de dupla parede (DSF, "double skin facade") hoje em discussão poderá contribuir para que estes grandes edifícios venham a ser mais humanos e menos energívoros - "more with less"!
Compare-se a magreza do corte da parede-cortina do Edificio Seagram com a robustez do corte equivalente do edifício Jespersen, projectado na mesma altura por Arne Jacobsen para a cidade de Copenhaga, fria como N. Y. no Inverno, mais moderada no Verão. Aqui estão o isolamento térmico, a correcção das pontes térmicas na parede, o vidro claro duplo em caixilharia de madeira forrada de alumínio pelo exterior...


Mas para mim o corte que mais me enche as medidas é ainda o do Instituto Nacional Pensões de Aalto, também da mesma altura (1952-56). Pela forma simples como, além do mais, aproveita a luz natural e porque me parece salvaguardar a inércia térmica útil das lages, não as revestindo com tectos isolantes. Gostava de confirmar.

Fonte dos desenhos: D. A. C. A. Boyne, Architects working details, The Architectural Press, London, 1951