Reflexões Planetárias

Wednesday, October 31, 2012

Desmantelar o estado social

A Filantropia, dizem-nos que irá substituir o estado social: em vez de procurar redestribuir a riqueza através dos impostos e do planeamento democrático, os politicos da austeridade preparam-se para acabar com o que vêem como uma relíquia irritante da história da classe trabalhadora. No seu lugar, somos informados que deveremos depender da caridade do sector mais ganancioso e explorador da nossa sociedade, os grandes capitalistas da nossa terra. Um grupo de indivíduos cujo temperamento é mais propriamente psicopático do que altruístico.
Joel Bakan

Dos jornais: "...as medidas de contingência que o Governo irá tomar no próximo ano em caso de derrapagem orçamental podem chegar a 0,5% do PIB, ou seja, cerca de 830 milhões de euros."

- Considerando que "em caso de derrapagem orçamental" se pode (ou deve) ler: "prevendo a derrapagem orçamental". Uma vez que os juros da dívida, para o ano 9.7 mil milhões de euros, crescem mais depressa do que o PIB e continuam intocáveis, a depressão economica agravar-se-à, afectando as receitas dos impostos e as despesas com a segurança social... que por seu turno acentuarão e alastrarão a depressão económica, social e psicológica;
- Considerando que as "medidas de contingência" se traduzem em "cortes na despesa" e que na despesa, afinal não avulta a gordura do estado, mas o tutano do estado social: na maior parte despesas com o ensino público, com o serviço nacional de saúde e com com pensões e reformas;
- Conclui-se que a expressão "medidas de contingência" é um eufemismo. Leia-se: o Governo, do tenebroso robot Gaspar acolitado pelo pobre títere Passos Coelho, prepara-se para desmantelar o estado-social.

Estão lançadas a desregulação social (designadamente as leis do trabalho) e ambiental (menos falada, como é o caso do desmantelamento da REN), bem como a privatização de bens e serviços públicos.
Para o ano o Governo irá lançar o seu programa de desmantelamento do estado social. Preparemo-nos, pois, para o discurso governamental enganador, centrado no contrário: na salvação do estado social! Será mau sinal. Muito mau sinal!
O que está em causa é, de facto a refundação do estado e não a refundação do memorando que, de qualquer modo já está em vias de ser substituido por outro: já se discute o segundo memorando. Está em causa outra substituição: a da Constituição!

O povo tem resistido pacificamente a esta ofensiva, porventura em grande parte, devido à persistência de três amortecedores: as ligações tradicionais à família e à "terra", o estado social que veio com o 25 de Abril e o consumismo tecnológico complusivo, estimulado pelas facilidades de crédito e pela publicidade.
Mas há limites e há sinais de que estamos a atingir esses limites.
Já não há tempo!
Já não há tempo, enfatiza pausadamente José Castro Caldas(1).
Já não há tempo para esperar pelas eleições da senhora Merkel!
Urge levar por diante uma alternativa democrática a este governo e à sua política demolidora de subordinação da sociedade ao mercado, para que o poder não caia na rua.
Queda deste governo - eleições - novo governo mandatado para negociar com as instâncias internacionais uma solução alternativa.
Mas como, no quadro da democracia representativa?
Por iniciativa do Presidente da Républica? Não é de esperar por ora.
Uma moção de desconfiança do partido socialista que, face à sua marginalização pela coligação governamental e aos multiplos entorces a um memorando falhado, tem agora argumentos para passar à oposição em defesa do estado social? Mas essa moção sairia derrotada, sem a abstenção do CDS!
Estamos num impasse democrático! O poder poderá cair na rua!
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(1) o artigo foi escrito a quente, após o debate "Orçamento 2013: Rejeição e Alternativas".

Sunday, October 28, 2012

Privatizar: O percalço da ANA!

Privatiza-se a ANA para conter o déficit das contas públicas... mas não se sabe agora se os senhores do EUROSTAT aceitarão este recurso artificioso a receitas extraordinárias!
Parece-me que não deveriam aceitar em nome da transparência e da coerência contabilistica. Mas suspeito que será... se a Europa germânica fechar os olhos a mais umas décimas no déficit. Afinal temos sido alunos exemplares no cumprimento de uma receita falhada e estamos no mundo abstracto dos números em que tudo se pode "arranjar".
Seja ou não seja, entretanto a ANA será vendida. Facto consumado!
Este percalço mostra que a necessidade de equilibrar as contas públicas, sendo prioritária para as instituições financeiras é também uma soberana oportunidade para privatizar (e dar cabo da economia nacional e do estado social) na lógica do capitalismo mercantil.
Com o seu programa de privatizações, o governo Coelho-Gaspar está a proceder à maior transferência de poder que ocorreu depois do 25 de Abril, na medida em que vende os principais recursos e serviços públicos a grandes investidores estrangeiros.
Uma transferência de sentido contrário ao da nacionalização da banca que ocorreu na sequência do 11 de Março de 1975.
E noutra escala!
A uma integração abusiva para os moderados - tinhamos então um banco central - sucede-se agora a superlativa desintegração de uma nação como coisa do passado sem futuro.

Agora que "os estados fortes impõem toda a espécie de barreiras aos investidores estrangeiros, na defesa dos interesses nacionais", protegendo os seus sectores estratégicos dos excessos do mercado livre, o governo Gaspar-Coelho faz exatamente o contrário: despedaça o país, dispersando a posse e gestão dos seus haveres e instituições na vasta zona de turbulência planetária em que hoje se entrechocam os grandes interesses transnacionais. Alinhados na visão econocrática do mundo em que impera a competição, estes senhores não se apercebem que estão a cometer um crime de lesa pátria e a contribuir para desintegração da Europa.

Wednesday, October 24, 2012

A Grande Banca e as ETN

Numa entrevista de 2010 sobre a actual "crise do capitalismo" , Leo Panitch aborda a nevralgica ligação entre a Grande Banca e as ETN (Empresas TransNacionais) na fase actual da globalização capitalista.
"É ilusório imaginar - nota Leo Panitch - que a finança é o mundo de Gordon Gecko, o "mau capitalismo" enquanto que o que a GM pratica é "bom capitalismo" e que a GM está nas lonas por causa do mundo de Gordon Gecko. Nada disso. Trata-se simplesmente de capitalismo; o capital produtivo das grandes empresas industriais e comerciais como a Wal-Mart bem como a grande banca, são parte de um todo e precisamos de entender a forma como se interligam"
Uma ligação não isenta de conflitos na Banca, nas ETN e entre a Banca e as ETN, com a aparente ascendência da Grande Banca privada (1).


Entretanto, não parece evidente que a deriva especulativa da Banca tenha prejudicado o mundo das ETN, o que não quer dizer que o merging que porventura ocasionou não tenha prejudicado as menos competitivas e, por maioria de razão as PME, seguindo a lógica do sistema capitalista.
O "gato de sete foles" do capitalismo está actualmente em crise, mas não está talvez moribundo como julga Slavoj Žižek e Karl Polanyi julgou que estava, na anterior crise dos anos trinta... erradamente como viemos a verificar.
Para Leo Panitch, tal como para Noam Chomsky, a economia de mercado, liderada pela Grande Banca e pela constelação das ETN, está em expansão por todo o mundo, no que usualmente se designa por globalização.
Caíram na sua órbita a China, a Rússia e a Índia, com efeitos dramáticos na Europa e nos Estados Unidos que agora alastram à "classe média" que tem sido o principal suporte social do capitalismo.
A onda de choque da recente crise de Wall-Street, está a ser aproveitada pela Grande Banca alinhada com as ETN para assaltar os povos europeus, culminando uma ofensiva plutocrática, dita neo-liberal, que vem dos anos setenta e se intensificou a partir dos anos oitenta.
Os seus generais não são militares, mas economistas neoclássicos que, subrepticiamente, têm vindo a ser instalados nas principais instâncias do poder político, com a conivência dos partidos do arco da governação, como aconteceu em Portugal.
No actual governo, são Jorge Gaspar e António Borges que contam para os plutocratas que querem internacionalizar a nossa economia para tirar proveito das nossas "vantagens comparativas" e não o tenor Passos Coelho, um pobre títere que tem cumprido, aliás desjeitadamente, a missão que lhe foi confiada: acalmar os ânimos da "populaça", fustigada pela dureza crescente das "medidas de austeridade".
Missão cada vez mais difícil, visto que o fascínio do progresso - tecnologia, cornucópia da abundância, nivel de vida, felicidade - que mantinha os eleitores confiantes no "sistema", está a ser minado pela austeridade sem fim, pela perda de confiança nos líderes e nas instituições, bem como pelo medo. Pelo medo acentuado pela insegurança e pela incerteza do que vem a seguir.

Mas - e isto é que é mais grave - não está conseguida a alternativa democrática à altura desta ameaça plutocrática que assola o mundo inteiro. Existem ideias, muitas ideias; falta conseguir a convergência e organização para a levar em frente.
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(1) Até no nosso pequeno rectangulo isto vem de trás. Lembremo-nos da quantidade de empresas que arrastou consigo a nacionalização da Banca, na sequência de "11 de Setembro de 1975".

Tuesday, October 16, 2012

A cidade o mercado e as novas tecnologias

São recorrentes os sentidos elogios que tecem, sobre o ambiente e a vida da cidade de Lisboa, muitos estrangeiros que por aqui passam.
A cidade, como todos nós, vai resistindo à ameaça dos "mercados" que se "desmaterializam de forma dramática".
Mercados que se "desmaterializam de forma dramática". O que quer isto dizer. Aliás, o que quer com isto dizer William Mitchell que sigo nestas linhas?

"Na velha cidade medieval, o "mercado" referia-se a uma praça, um lugar físico em que se mercadejava". O mercado estava "dentro" da cidade!


"No tempo de Adam Smith, o termo começou a designar um sistema de trocas abstrato, espacialmente ambíguo, mais propriamente descrito pelas equações dos economistas do que pelos desenhos dos arquitectos." A sociedade está "dentro" do mercado!
Quando "caiu" a Bolsa de Wall Street dando lugar à crise financeira que se globalizou, não foi o edificio que colapsou nem o que está dentro dele! Foi algo de intangível que percorre as veias electonicas do homo economicus.


A eclosão das novas tecnologias nesta fase neotécnica, desvia competências da antiga fábrica da polis para o espaço electrónico, mas não lhe retira outras, do dominio do "ambiente", dos serviços públicos e da vida comunitária, patenteadas no elogio dos estrangeiros.
Caberá a todos os cidadãos e, em especial aos responsáveis pela governação das cidades, desenvolver essas competências urbanas para que a sociedade de mercado não colapse, observa William Mitchell. Assim sendo, o futuro desta sociedade depende afinal do futuro das cidades. A propósito disto e de uma polémica que está na ordem do dia, é oportuno considerar que os arquitectos terão que repensar - e não abandonar - a sua profissão!
É claro que estamos a aceitar como boa ou inevitável a economia de mercado e, com ela, a sociedade de mercado, o que não é hoje uma evidência!
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Fontes: A imagem da Praça Rodrigues Lobo num dia de mercado em Leiria, pertence à colecção do autor; a imagem da Internet foi encontrada no blog Rhema.

Friday, October 12, 2012

Casas pequenas

Há boas razões de ordem prática para preferirmos casas pequenas.
Em princípio, quanto mais pequenas são as casas menor é o seu custo inicial, bem como são menores os custos de manutenção.
Para mais, o que poupamos no custo inicial poderá compensar maiores custos associados à localização, permitindo-nos aceder a zonas centrais mais apeteciveis pela sua vida urbana, ou a zonas excêntricas mais valorizadas pela sua qualidade ambiental.
Casas mais pequenas, em que tudo está mais à mão em estantes, armários e bancadas que aproveitam engenhosamente paredes e recantos da construção, podem economizar passos e movimentos nas lides domésticas, libertando-nos para tarefas que poderão ser mais gratificantes. Eis a "pequena" casa eficiente, equacionada nestes termos por Catherine Beecher... nos meados do século XIX!
As casas pequenas são apropriadas para famílias pequenas e, designadamente os idosos, parte crescente do universo das famílias portuguesas, mas é compreensível que não atraiam as familias mais numerosas, nem os que precisam de casas grandes por uma questão de status ou para guardar uma grande quantidade coisas que vão acumulando ao longo da vida.
Vêm estas reflexões a propósito do vídeo clip inserido neste artigo que dá a conhecer os resultados de uma ronda pelo mundo das casas pequenas construidas e habitadas na América e na Europa. Casas pequenas, mínimas que traduzem nos seus escassos 10 ou 20 m2 um minimalismo extreme no viver, seja no espírito naturalista da cabana artesanal de Henry Thoreau, seja no espírito maquinista do Dymaxion de Buckminster Fuller.
A ronda começa pela América em que, logo nos primeiros exemplos se vê que uma grande fileira das casas pequenas se filia nas "caravanas", as "mobile homes" que proliferaram nos Estados Unidos, chegando a atingir um terço das moradias construidas na década de setenta. O que move esta população nómada? Um espírito de self-reliance? A procura de novas sensações? Razões mais pragmáticas como a poupança no custo do terreno ou a busca de novos empregos? Decerto uma boa ideia para o nosso Ministro Álvaro Santos Pereira!



Mas há uma outra ordem de razões que poderá justificar casas pequenas, mas que não parece estar muito presente nas entrevistas. As preocupações que se avolumaram desde os anos noventa, com a consciencialização ecológica gerada pelo impacte ambiental da modernização industrial que foi alastrando a toda a nossa vida quotidiana, passada nos transportes e nos edifícios.
São as preocupações com a designada "sustentabilidade ambiental", ao nível das cidades e ao nível dos edifícios.
Quanto ás cidades, a generalização de casas mais pequenas torna as cidades mais pequenas para a mesma população e por isso mais acessíveis a pé ou de bicicleta, o que pode torná-las mais apraziveis e animadas.

Quanto aos edifícios e na parte que aqui interessa, essas preocupações levaram a procurar alentar e fechar os ciclos da energia, dos fluídos e dos materiais, incluindo os materiais de construção e a energia neles incorporada, em casas ditas "bioclimáticas", adaptadas ao clima local para nosso conforto.

As casas pequenas, além de reduzirem a "pegada ecológica" que imprimem directamente in loco, ajudam a aproveitar melhor os edifícios existentes e a usar menos materiais, o que vai no sentido da sustentabilidade.
Mas, casas pequenas na forma de mini-moradia... não nos ajudam a poupar nos aparelhos de aquecimento e arrefecimento, porque são muito sensíveis ás variações do clima, aos golpes de calor e de frio e a outros fenómenos extremos que tendem a aumentar com as alterações climáticas que a miopia economicista não nos deixa mitigar!
E quanto à sustentabilidade dos materiais, não chega usar menos. Temos também que usar os mais sustentáveis, de que são exemplo os reciclados ou a terra crua colhida no local a que retorna naturalmente no fim de vida da construção, para dar lugar a outra casa ou ao campo... Uma espécie de eterno retorno, no contexto circular em que as casas pequenas têm o seu pequeno lugar!
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Figura extraída da versão portuguesa do livro "A Green Vitruvius". Ao que suponho, ainda hoje o único primer em português, visando introduzir a sustentabilidade no projecto de arquitectura, foi editado pela Ordem dos Arquitectos. Nunca foi sériamente debatido pela classe e há anos que se encontra esgotado.

Wednesday, October 10, 2012

Cruel plutocracia!

O Governo do JotaSD Passos Coelho é apenas um instrumento descartável dessa fétida "flor do mal do pior capitalismo" que é a plutocracia. Aqui, consinto, Salazar acertou em cheio!
A cruel desumanidade da plutocracia atinge dolorosamente os mais fracos - entre eles os doentes, as crianças e os mais velhos - mas são, entre estes, os mais sábios e sensíveis os mais capazes de a pôr a nu em toda a sua bárbara brutalidade, não por números mas por palavras dignamente sentidas e medidas com a métrica da alma.
Foi isto que senti ao ler a carta dirigida ao Chefe do actual governo, asssinada por Eugénio Lisboa. Por isso a transcrevo com sentido respeito:


"Exmo. Senhor Primeiro Ministro

Hesitei muito em dirigir-lhe estas palavras, que mais não dão do que uma pálida ideia da onda de indignação que varre o país, de norte a sul, e de leste a oeste. Além do mais, não é meu costume nem vocação escrever coisas de cariz político, mais me inclinando para o pelouro cultural. Mas há momentos em que, mesmo que não vamos nós ao encontro da política, vem ela, irresistivelmente, ao nosso encontro. E, então, não há que fugir-lhe.
Para ser inteiramente franco, escrevo-lhe, não tanto por acreditar que vá ter em V. Exa. qualquer efeito — todo o vosso comportamento, neste primeiro ano de governo, traindo, inescrupulosamente, todas as promessas feitas em campanha eleitoral, não convida à esperança numa reviravolta! — mas, antes, para ficar de bem com a minha consciência. Tenho 82 anos e pouco me restará de vida, o que significa que, a mim, já pouco mal poderá infligir V. Exa. e o algum que me inflija será sempre de curta duração. É aquilo a que costumo chamar “as vantagens do túmulo” ou, se preferir, a coragem que dá a proximidade do túmulo. Tanto o que me dê como o que me tire será sempre de curta duração. Não será, pois, de mim que falo, mesmo quando use, na frase, o “odioso eu”, a que aludia Pascal.
Mas tenho, como disse, 82 anos e, portanto, uma alongada e bem vivida experiência da velhice — a minha e da dos meus amigos e familiares. A velhice é um pouco — ou é muito – a experiência de uma contínua e ininterrupta perda de poderes. “Desistir é a derradeira tragédia”, disse um escritor pouco conhecido. Desistir é aquilo que vão fazendo, sem cessar, os que envelhecem. Desistir, palavra horrível. Estamos no verão, no momento em que escrevo isto, e acorrem-me as palavras tremendas de um grande poeta inglês do século XX (Eliot): “Um velho, num mês de secura”... A velhice, encarquilhando-se, no meio da desolação e da secura. É para isto que servem os poetas: para encontrarem, em poucas palavras, a medalha eficaz e definitiva para uma situação, uma visão, uma emoção ou uma ideia.

A velhice, Senhor Primeiro Ministro, é, com as dores que arrasta — as físicas, as emotivas e as morais — um período bem difícil de atravessar. Já alguém a definiu como o departamento dos doentes externos do Purgatório. E uma grande contista da Nova Zelândia, que dava pelo nome de Katherine Mansfield, com a afinada sensibilidade e sabedoria da vida, de que V. Exa. e o seu governo parecem ter défice, observou, num dos contos singulares do seu belíssimo livro intitulado The Garden Party: “O velho Sr. Neave achava-se demasiado velho para a primavera.” Ser velho é também isto: acharmos que a primavera já não é para nós, que não temos direito a ela, que estamos a mais, dentro dela... Já foi nossa, já, de certo modo, nos definiu. Hoje, não. Hoje, sentimos que já não interessamos, que, até, incomodamos. Todo o discurso político de V. Exas., os do governo, todas as vossas decisões apontam na mesma direcção: mandar-nos para o cimo da montanha, embrulhados em metade de uma velha manta, à espera de que o urso lendário (ou o frio) venha tomar conta de nós. Cortam-nos tudo, o conforto, o direito de nos sentirmos, não digo amados (seria muito), mas, de algum modo, utilizáveis: sempre temos umas pitadas de sabedoria caseira a propiciar aos mais estouvados e impulsivos da nova casta que nos assola. Mas não. Pessoas, como eu, estiveram, até depois dos 65 anos, sem gastar um tostão ao Estado, com a sua saúde ou com a falta dela. Sempre, no entanto, descontando uma fatia pesada do seu salário, para uma ADSE, que talvez nos fosse útil, num período de necessidade, que se foi desejando longínquo. Chegado, já sobre o tarde, o momento de alguma necessidade, tudo nos é retirado, sem uma atenção, pequena que fosse, ao contrato anteriormente firmado. É quando mais necessitamos, para lutar contra a doença, contra a dor e contra o isolamento gradativamente crescente, que nos constituímos em alvo favorito do tiroteio fiscal: subsídios (que não passavam de uma forma de disfarçar a incompetência salarial), comparticipações nos custos da saúde, actualizações salariais — tudo pela borda fora. Incluindo, também, esse papel embaraçoso que é a Constituição, particularmente odiada por estes novos fundibulários. O que é preciso é salvar os ricos, os bancos, que andaram a brincar à Dona Branca com o nosso dinheiro e as empresas de tubarões, que enriquecem sem arriscar um cabelo, em simbiose sinistra com um Estado que dá o que não é dele e paga o que diz não ter, para que eles enriqueçam mais, passando a fruir o que também não é deles, porque até é nosso.

Já alguém, aludindo à mesma falta de sensibilidade de que V. Exa. dá provas, em relação à velhice e aos seus poderes decrescentes e mal apoiados, sugeriu, com humor ferino, que se atirassem os velhos e os reformados para asilos desguarnecidos, situados, de preferência, em andares altos de prédios muito altos: de um 14º andar, explicava, a desolação que se comtempla até passa por paisagem. V. Exa. e os do seu governo exibem uma sensibilidade muito, mas mesmo muito, neste gosto. V. Exas. transformam a velhice num crime punível pela medida grande. As políticas radicais de V. Exa, e do seu robôtico Ministro das Finanças — sim, porque a Troika informou que as políticas são vossas e não deles... — têm levado a isto: a uma total anestesia das antenas sociais ou simplesmente humanas, que caracterizam aqueles grandes políticos e estadistas que a História não confina a míseras notas de pé de página.

Falei da velhice porque é o pelouro que, de momento, tenho mais à mão. Mas o sofrimento devastador, que o fundamentalismo ideológico de V. Exa. está desencadear pelo país fora, afecta muito mais do que a fatia dos velhos e reformados. Jovens sem emprego e sem futuro à vista, homens e mulheres de todas as idades e de todos os caminhos da vida — tudo é queimado no altar ideológico onde arde a chama de um dogma cego à fria realidade dos factos e dos resultados.Dizia Joan Ruddock não acreditar que radicalismo e bom senso fossem incompatíveis. V. Exa. e o seu governo provam que o são: não há forma de conviverem pacificamente. Nisto, estou muito de acordo com a sensatez do antigo ministro conservador inglês, Francis Pym, que teve a ousadia de avisar a Primeira Ministra Margaret Thatcher (uma expoente do extremismo neoliberal), nestes termos: “Extremismo e conservantismo são termos contraditórios”. Pym pagou, é claro, a factura: se a memória me não engana, foi o primeiro membro do primeiro governo de Thatcher a ser despedido, sem apelo nem agravo. A“conservadora” Margaret Thatcher — como o “conservador”Passos Coelho — quis misturar água com azeite, isto é, conservantismo e extremismo. Claro que não dá.

Alguém observava que os americanos ficavam muito admirados quando se sabiam odiados. É possível que, no governo e no partido a que V. Exa. preside, a maior parte dos seus constituintes não se aperceba bem (ou, apercebendo-se, não compreenda), de que lavra, no país, um grande incêndio de ressentimento e ódio. Darei a V. Exa. — e com isto termino — uma pista para um bom entendimento do que se está a passar. Atribuíram-se ao Papa Gregório VII estas palavras: “Eu amei a justiça e odiei a iniquidade: por isso, morro no exílio.” Uma grande parte da população portuguesa, hoje, sente-se exilada no seu próprio país, pelo delito de pedir mais justiça e mais equidade. Tanto uma como outra se fazem, cada dia, mais invisíveis. Há nisto, é claro, um perigo.

De V. Exa., atentamente,
Eugénio Lisboa"

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Obrigado Eugénío Lisboa. Obrigado Eduardo Pitta pela divulgação desta notável carta de denúncia da iniquidade politica que se abate sobre nós e, obrigado José António Menezes que me levaste até ao blog DA Literatura.

Thursday, October 04, 2012

Quem deve pagar a austeridade?

Tranduzo na integra um oportuno artigo de Myret Zaqui, publicado na revista Bilan que fala da capitulação de Portugal e da Europa face ao ataque dos mercados financeiros, com números e nomes que sublinho:

"Nas últimas semanas, vimos as populações manifestar-se contra os malefícios da austeridade, seja na Grécia, em Espanha ou em Portugal, sobre o fundo de uma crescente eurofobia. No espírito de qualquer um, a culpa é da «austeridade».Mas o verdadeiro problema, não é a austeridade. É o de quem paga a factura desta austeridade. Os sacrificados são a massa de pequenos e médios assalariados(1) da zona euro que formam o tecido da economia real. Eis o trágico quiproquo: os que pagam não são os principais responsáveis pela crise. Jamais os povos tiveram que empobrecer num mundo tão rico, tendo a sua prodigalidade tão pouco a ver com a crise. É a este título que a austeridade é ilegítima. Daí o profundo mal estar. Esta crise tem origem nos desgastes colossais da especulação financeira sobre a economia real e sobre os orçamentos dos Estados. Estes últimos tiveram que encaixar os grandes choques recessivos e fiscais da bolha bolsista e imobiliária vinda dos Estados Unidos, que desencadeou, por via do mimetismo monetário, bolhas idênticas em Espanha, em Inglaterra e na Irlanda. As mesmas técnicas especulativas importadas permitiram à Goldman Sachs enriquecer, vendendo à Grécia uma solução para disfarçar o seu endividamento. As tensões actuais vêm da percepção de que a riqueza é desviada, tendo as populações suportado primeiro o resgate dos bancos, para depois suportar o resgate dos Estados... que tinham salvo a finança privada.
Quando os Portugueses marcham contra o "roubo dos salários e das pensões", eles apercebem-se que estão a ser enganados.

E com razão. Assim, os mesmos 5 mil milhões de euros que Lisboa exige que os Portugueses economizem em 2013 correspondem ao que os fundos especulativos arrecadaram em 2011, degradando a dívida de Portugal e dos seus vizinhos. Desde 2011, com efeito, o desvio da riqueza opera-se por via de ganhos privados realizados com a compra de dívidas europeias. Em 2011, os fundos especulativos geraram as suas melhores receitas com a queda provocada das obrigações da zona euro. Segundo o CNBC,os fundos britânicos Brevan Howard, Caxton Associates e GLG Partners ganharam, só nos meses de Agosto a Setembro de 2011, 3 mil milhões de dólares, ou seja metade da austeridade que deverá consentir Portugal em 2013... E estamos a falar de três fundos em algumas semanas. Seria preciso acrescentar ainda o que ganharam, apostando contra a Europa, os fundos de Paul Tudor Jones, Soros Fund Management, Brigade Capital, Greenlight Capital et SAC Capital Management, mas também John Paulson, tal como os principais bancos intermédios nestas estratégias que são os Goldman Sachs, Bank of America e Barclays. Criaram-se imensas fortunas. Estes ganhos provêm da queda do valor das obrigações gregas e dos países vizinhos, causadas por vendas maciças a descoberto ("short selling"). O dinheiro arrecadado nestas apostas de venda é o mesmo que é subtraído aos governos pela forte subida das taxas de juro assim provocada, induzindo o seu estrangulamento financeiro. Com a austeridade, Atenas, Lisboa et Madrid exigem aos assalariados europeus que cubram as perdas colossais que estes governos sofreram com a transferência de uma parte das suas riquezas para a finança especulativa. Esta última permitiu assim que os fundos públicos passassem para "traders" milionários.

Fortunas colossais
Os ganhos individuais que pode gerar o "short selling" ultrapassam a nossa compreensão. O americano John Paulson embolsou, só ele, 3 mil milhões de dólares en 2007 apostando no imobiliário americano. Antes dele, George Soros ganhou pessoalmente 2 mil milhões em 1992 fazendo cair a libra esterlina. Os "hedge funds" ganham mais do que paises inteiros. Em 2006, 25 especuladores (como Jim Simons e Kenneth Griffin) tinham embolsado pessoalmente o equivalente ao PIB da islândia (15 mil milhões de dólares). Há quem recuse por princípio estabelecer qualquer ligação entre as fortunas acumuladas pelos "hedge funds" que especulam com as dificuldades da Europa e a austeridade em curso: isso é esquecer noções financeiras básicas. É por demais evidente que os ganhos obtidos pelos actores financeiros equivalem à austeridade que é hoje suportada pela população. Os que deviam recapitalizar os Estados não são senão os que os arruinaram. Pelo menos deviam contribuir na proporção das perdas económicas e do endividamento que ocasionaram. Mas como poderá a Europa recuperar este dinheiro, ela que tentou em vão regulamentar a especulação?"

Pois, digo eu: Quem deveria pagar a austeridade seriam aqueles que a provocaram : os mercados financeiros... se imperassem princípios morais e não a lógica do ganho, a lei do mais forte. Mas não. São eles que continuam a ganhar com ela, agravando dia a dia a austeridade em que nos estão a afundar, com a conivência de um governo sitiado!
Em Portugal, estão a operar no mercado da dívida pública os seguintes "mercados": Banco Espirito Santo, SA; Banco Santander; Barclays Bank, plc; BNP Paribas; Caixa Banco de Investimento, SA; Citigroup Global Markets Limited; Crédit Agricole CIB; Credit Suisse; Deutsche Bank, AG; Goldman Sachs International Bank; HSBC France; ING Bank, NV; Jefferies International Limited; Morgan Stanley & Co International; Nomura International Société Générale; The Royal Bank of Scotland, plc; UniCredit (HVB); BPI, SA; Caixa Central de Crédito Agricola Mútuo; Commerzbank; Millennium bcp. (Fonte: IGCP)
Bancos. Quantos deles estão a aproveitar o infame artigo 104º do Tratado de Maastricht, ganhando com a diferença de juros entre os que pagam pelo que recebem emprestado do BCE e os que recebem do que emprestam ao Estado português?
E alguns destes bancos são portugueses! Incluindo uma caixa de crédito agrícola mútuo!
Mas então e o financiamento das nossas empresas industriais e agrícolas? Por este caminho, o PIB não parará de diminuir e a dívida de aumentar!
É o mercado a funcionar, dizem os sacerdotes do mercado! Mas, dizemos nós, é urgente que funcione a democracia, não só em Portugal mas em toda a Europa, para sustar este desastroso processo de regulação em tendência em que nos estamos a deixar arrastar para o colapso!
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(1) Eu acrescentaria as PMEs