Reflexões Planetárias

Thursday, August 15, 2013

Ah, poder ser tu sendo eu!

Em A Seta e o Anel (1), António José Saraiva faz "em tom de dúvida, uma breve reflexão sobre o espírito da nossa ciência ocidental."
"Ela identificou a ciência com o domínio da natureza, o conhecimento da mecânica, o conhecimento da estrutura da matéria, o conhecimento do ser vivo e, por fim, o conhecimento objectivo do homem, considerado ele próprio como natureza."
Desta forma - conclui A. J. Saraiva - a Ciência legitimou não só a separação entre o homem e a natureza, mas também entre o homem e ele mesmo. Isto é, um dualismo irredutível. As chamadas ciências humanas consistem em tornar o homem objecto do homem, quer individual quer colectivamente. Também aqui há uma quantificação abstractizante do qualitativo. As ciências humanas são ciências desumanizantes. É uma corrida sem fim. À medida que se conhece mais, se objectiva mais, se qualifica mais, uma parte do homem se torna objecto, estranho a ele mesmo, enquanto a outra parte, aquela que procura o homem, se escraviza à metodologia do conhecimento dito científico, isto é, se submete a leis exteriores à consciência. E, do ponto de vista social, mais o outro se torna alheio e incomunicável. E, por outro lado, mais os "outros", isto é, todos os que estão submetidos à observação e ao conhecimento metódicos, se convertem em massa manipulável pelo sujeito do saber e do poder."
"E daqui nasce, em alguns poetas, a profunda nostalgia da identificação da consciência com o ser que está, por exemplo, na essência da poesia de Fernando Pessoa:"

Ah, poder ser tu sendo eu...



A ciência que A. J. Saraiva associa ao dualismo, entendo eu ser a ciência clássica mecanicista que, segundo Prigogine e Stengers, "opõe o observador desencarnado" - no sentido de Merleau Ponty - "ao objecto do conhecimento visto á vol de oiseau". A mesma ciência que embotou a sensibilidade de Charles Darwin, fazendo-o perder o gosto pela artes e as letras, ao convertê-lo numa máquina de deduzir leis a partir de dados:
"Há uns trinta anos, e mesmo depois - escreve Charles Darwin na sua biografia - muitas classes de poesia... davam-me imenso prazer, quando era estudante gostava muito de Shakespeare e, especialmente das obras históricas. Também já disse que no passado a pintura e a música me davam um considerável prazer. Mas há muitos anos que não leio uma linha de poesia. Tentei recentemente ler Shakespeare mas aborreceu-me tanto que me causou náuseas. Também perdi quase por completo o gosto pela arte e pela música... A minha mente parece que se converteu numa máquina de deduzir leis gerais a partir de grande colecção de dados, mas não consigo perceber como é que isto causou a atorfia dessa parte do meu cérebro da qual dependem os sentimentos mais elevados... A sua perda é uma perda de felicidade e muito possivelmente será prejudicial ao intelecto e, mais provavelmente ainda, ao caracter moral devido à debilitação da parte emocional da nossa consciência"

Este empobrecimento espiritual tão vividamente descrito por Darwin, esmagará toda a nossa civilização se permitirmos que prossiga no sentido que Gilson (2) diz ser o da " extensão da ciência positiva aos factos sociais"... O resultado desta redução é "a perda de toda a força superior que enobrece a vida humana e a degradação, não só da parte emocional da nossa natureza, mas também, como Darwin percebeu, do nosso carácter intelectual e moral. Estes sinais são visiveis por toda a parte"

O precedente comentário ás amargas reflexões de Darwin é de um economista "não-clássico" - E. F Schumacher - que das páginas dos jornais dos anos setenta, caiu para o vale do esquecimento nos tempos de hoje, tão conturbados pela objectivação mercantil, para usar a terminologia de António José Saraiva.

Acontece que ao tempo em que Saraiva escreveu "A Seta e o Anel", Schumacher escrevia o seu "Small is Beautiful" e estava em curso uma metamorfose da ciência, trocando a "seta" pelo "anel" numa "nova aliança" (3).
Bons sinais em tempos de mudança!
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Videoclip no blog "As palavras que buscamos"
(1) Ensaio sobre o progresso escrito para uma palestra proferida na SEDES e publicado na Revista "Raíz & Utopia", nº 2, Verão 1977
(2) Schumacher refere-se a Étienne Gilson, filósofo e historiador da filosofia medieval
(3) Ilya Prigogine a Isabelle Stengers, La nouvelle alliance - Métamorphose de la science, Gallimard 1979

1 Comments:

At 11:19 AM, Anonymous Anonymous said...

Eu gosto desta! :-)

https://www.youtube.com/watch?v=8Lu4C9q5J-0

 

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