Reflexões Planetárias

Saturday, February 27, 2016

A integração europeia está a andar para trás?

A integração europeia está a andar para trás? Pergunta C.J. Polychroniou a Noam Chomsky.
A entrevista, publicada em 25 de Janeiro passado na revista "truthout", articula duas ameaças à integridade da Europa: a ameaça exterior das ondas de refugiados e imigrantes que se abatem sobre a Europa e outra gerada no seu interior pela política de austeridade. Não só no segundo, mas também no primeiro caso a Europa está a sofrer as consequências dos seus próprios actos, numa espécie de Nemésis como referi num artigo algo sombrio de Novembro passado, na sequência de um outro sobre o "Naufrágio da Europa", em arrepiante consonância com Chomsky que o desenvolve com a sua fundamentada assertividade.
Senão vejamos. Diz Chomsky sobre as origem da crise dos refugiados: "Dois golpes do camartelo ocidental tiveram um efeito dramático. O primeiro foi a invasão do Iraque pela coligação Estados Unidos-Grã Bretanha. O segundo golpe do camartelo destruiu a Líbia, hoje um caos de bandos armados."
Estas são causas próximas, porque há outras mais antigas. "Durante séculos, a Europa torturou África - ou, em termos mais brandos - explorou Africa em proveito próprio, se adoptarmos a recomendação de george Kennan no pós-guerra (da II Guerra Mundial)."
E de que maneira! Chomsky cita o caso do Congo. Patrice Lumumba, uma das mais proeminentes figuras de Africa" ..."foi marcado pela CIA para ser assassinado, mas os Belgas adiantaram-se. O seu corpo foi cortado aos bocados e dissovido em acido sulfúrico. Os Estados Unidos e seus aliados apoiaram o criminoso cleptomaniaco Mobutu. Hoje, o Congo Oriental é palco das maiores carnificinas, apoiadas pelo Rwanda, o favorito dos Estados Unidos, enquanto os bandos armados cobrem a avidez das multinacionais ocidentais pelos minerais para telemóveis e outras maravilhas tecnológicas." Poderiamos andar muito mais para trás nos exemplos!
Causas próximas e longínquas originadas no Ocidente, Europa e Estados Unidos.
Mas existe ainda a "terrivel seca na Síria que destroçou a sociedade, provavelmente um efeito do Aquecimento Global que não é exatamente natural. A crise de Darfur foi em parte consequência da desertificação"... "As horríveis fomes na Africa Central de hoje, também se podem dever em parte ao assalto ao ambiente durante o Antropoceno"...
A destruição do ambiente de vida e a dilaceração social dos povos do Médio Oriente e de Africa como a Síria e a Líbia e da Asia como o Afeganistão, com a contribuição da política ocidental de há séculos, justificam a dimensão da crise humanitária que agora se abate directamente sobre os povos Europeus e a sua dificuldade em lidar com ela, nesta fase em que a ofensiva neoliberal tomou conta da liderança política em que mais se acentua o culto da competição em prejuízo da ajuda mútua.
A governança da União Europeia, nas incisívas palavras de Chomsky, "baqueou quase totalmente na resposta à catastrofe humana que é em grande parte o resultado dos crimes do Ocidente". "Poucos são os que, pelo menos temporariamente, quizeram fazer mais do que levantar um dedo, como a Alemanha e a Suécia", "numa Europa que pretende induzir a Turquia a manter as miseráveis vitimas do "naufrágio" bem longe das suas fronteiras, tal como a América está a fazer, pressionando o México a manter longe das suas os que pretendem fugir das ruínas deixadas pelos crimes dos Estados Unidos na América Central."
A esta ameaça exterior à integração europeia, soma-se a que é gerada no seu interior pela política de austeridade, fruto da mesma subordinação aos interesses, dos valores de que tanto se vangloria esta Europa do capital.
Não resisto a estender-me na tradução da analise crítica de Chomsky sobre o caso grego que me parece exemplar: "A crise grega continua incontida e os credores internacionais exigem constantemente mais reformas daquelas que qualquer governo europeu não seria capaz de implementar. Em certos casos, de facto, as suas exigências de mais reformas não são acompanhadas por medidas específicas, dando a impressão de que se trata de uma demonstração de um sadismo brutal exercido sobre povo grego."
"Quando o governo da Grécia sugeriu que se pedisse ao povo grego para expressar as suas opiniões sobre o seu futuro, a reacção da elite europeia foi de absoluto horror perante tal imprudência. Os gregos a ousar ver a democracia como um valor a ser respeitado no país onde nasceu? Os governantes eurocratas reagiram com um sadismo extremo, impondo medidas ainda mais duras, sem dúvida para arruinar a Grécia e apropriar-se de tudo o que quizesssem. O alvo de tal sadismo não são em particular os gregos, mas todos os que ousarem imaginar que o povo pode ter direitos que se meçam com os das instituições financeiras e dos investidores." A pensar portanto nos portugueses, nos espanhois, nos irlandeses...
E continua Chomsky: "Geralmente as medidas de austeridade fazem pouco sentido, mesmo para economistas do FMI (que não para os seus actores políticos). É dificil pensar tudo isto senão como uma guerra de classes, procurando desfazer os ganhos democráticos que foram uma das maiores contribuições da civilização moderna."
Mas afinal o governo do Syriza renegou as suas promessas pré- eleitorais acabando por assinar o acordo de resgate, observa o entrevistador! Chomsky responde cautelosamente, manifestando não se sentir suficiente próximo da situação para comentar, mas não deixa de notar que "As suas opções poderiam ser consideravelmente ampliadas se eles tivessem recebido um suporte significativo de outras forças populares da Europa." Não estará então o Syriza a resistir na esperança que isso ainda venha a acontecer?
Finalmente, convicto de que se poderá ir muito mais longe nas reformas democráticas pressionando-as até ao seus limites dentro do sistema capitalista, Chomsky distingue o processo da moeda úníca circunstancialmente inapropriado, do processo de integração europeia que considera ser um grande avanço.
Noam Chomsky não é um velho radical desiludido, mas um jovem de oitenta e sete anos que mobiliza a esperança que subsiste em todos nós!

Friday, February 26, 2016

Considerações sobre a sensibilidade de Proust

Regresso a Marcel Proust que aqui deixei...vai para oito anos e meio (como o tempo passa!):
"J'avais revu tantôt l'une, tantôt l'autre des chambres que j'avais habitées dans ma vie et je finissais par me les rappeler toutes dans les longues rêveries qui suivaient mon réveil: chambres d'hiver...oú, par un temps glacial, le plaisir qu'on goûte est de se sentir separé du dehors (comme l'hirondelle de mer qui a son nid au fond d'un souterrain dans le chaleur de la terre) et, oú, le feu étant entretenu toute la nuit dans la cheminée, on dort dans un grand manteau d'air chaud et fummeux, traversé de lueurs des tisons qui se rallument, sorte de impalpable alcôve, de chaude caverne creusée au sein de la chambre même, zone ardente et mobile en ses contours thermiques, aérée de souffles que nous refraîchissent la figure et vienent des angles, des parties voisines de la fenêtre ou eloignées du foyer et qui se sont refroidies; chambres d'été où l'on aime être uni à la nuit tiède, où le clair de lune appuyé aux volets entr'ouverts jette jusque au pied du lit son échelle enchantée, où on dort presque en plein air, comme la mésange balancée para la brise à la ponte du rayon". (Marcel Proust, Du cotê de chez Swann - A la recherche du temps perdu")

Proust evidencia duas situações - de inverno e de verão - que caracterizam o clima temperado, moderado e misto, da Europa meridional que conhecemos em Portugal: uma que convida ao recolhimento e ao aconchego e outra que impele a uma mais franca abertura ao exterior.
E evidencia-o de uma forma poética que enriquece a experiência térmica adentro de uma vivência multi-sensorial, contemplando uma fina apreensão dos processos físicos, como o das trocas de calor por convecção com origem nas "pontes térmicas" activada pela "tiragem térmica" da chaminé ("souffles que nous refraîchissent la figure et vienent des angles, des parties voisines de la fenêtre ou eloignées du foyer et qui se sont refroidies")!

A sensibilidade de Proust era então e ainda hoje é incomum. O que não quer dizer que sejamos insensíveis à magia do fogo que crepita numa lareira ou ao seu poder congregador, ou ao inconforto das correntes de ar ou de uma parede fria. Acontece até que o avanço da ciência depois de Proust nos permite compreender como uma casa pode contribuir para o nosso conforto "omnisensorial" como dizia Richard Neutra que, há mais de meio século, fazia assim a transposição para a arquitectura do que então já se sabia sobre a fisica das trocas de calor associada à fisiologia da termoregulação:

O arquitecto que coloca um sofá integrado na construção, com uma parede de betão de um lado, um envidraçado do outro e um lambril de madeira por detrás do sofá, estabeleceu um definido padrão de perdas de calor.
Devemos ter presente que as várias partes do corpo não são igualmente sensíveis ás perdas de calor: a planta do pé e a região dorsal são mais sensíveis do que, por exemplo o nosso peito ou a cabeça. A cabeça, por seu turno, tem nas trocas radiativas um comportamento muito diferente do que tem, digamos, a nossa palma da mão.



E concluia Richard Neutra no seu "Survival through design":
Pode-se logo à partida, desenhar uma sala, a sua orientação e a selecção dos materiais, de tal modo que as perdas de calor, a radiação e a movimentação do ar, sejam partes relevantes do estudo. Desta forma, pode-se alcançar uma diversidade mais rica e gratificante do que quando o projecto se preocupa apenas com a percepção visual e ignora outros potenciais objectivos sensoriais.

Proust e Neutra convergem na experiência multisensorial do lugar, mas divergem na poïesis: a imaginação de Proust divaga num carregado interior novecentista a que os arquitectos como Neutra contrapõem a transparência. Transparência que, na sociedade moderna, adquire uma dupla conotação estética e ética, associada ao higienismo então propagandeado por médicos como o Dr. Philip Lovell nos Estados Unidos e o Dr. Pierre Winter na Europa, bem próximos de Neutra e Corbu.
Richard Neutra que, de modo nenhum menosprezava a experiência visual, como se vê nas imagens das suas icónicas casas californianas que preparava cuidadosamente com Julius Schulman assinala, no passo que se transcreve, o ponto fraco da sua formação "beaux arts" que tanto o decepcionou, como explicitamente refere em "Survival Through Design": O formalismo visualista do "arquitecto euclidiano"... que ainda está entre nós!
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Na primeira imagem o quarto de Marcel Proust (fonte), na segunda a sala da Singleton House, LA/California (fonte), um projecto de Richard Neutra (1959) em que me parece ser legivel a disposição acima referida pelo autor.

Saturday, February 20, 2016

Não basta renegociar a dívida

A renegociação da dívida tem que ser acompanhada pela recuperação da soberania financeira para nos livramos de vez da dividocracia.
Ciclópica tarefa para os cidadãos!...
Desde logo porque tem que ser desmontado o mecanismo da dependência dos Estados em relação aos "mercados financeiros",
instituido no tratado de Maastricht, em obediência à cartilha neoliberal que rege esta Europa austeritária.

O mecanismo da criação de moeda - de dívida livre de juros - provoca inflação insustentável? Não necessáriamente como se vê no que acontece com o "quantitative easing" lançado "in extremis"pelo BCE, em exclusivo benefício da grande banca.
É "injusto"? Então não é mais "injusto que deixemos as instituições privadas criar, sem nenhum esforço da sua parte, 97% do dinheiro que circula na nossa economia, taxando depois a sua utilização na forma de juros sobre a dívida?" (recensão sobre a obra de Michael Rowbotham, Grip of death).