Reflexões Planetárias

Friday, February 26, 2016

Considerações sobre a sensibilidade de Proust

Regresso a Marcel Proust que aqui deixei...vai para oito anos e meio (como o tempo passa!):
"J'avais revu tantôt l'une, tantôt l'autre des chambres que j'avais habitées dans ma vie et je finissais par me les rappeler toutes dans les longues rêveries qui suivaient mon réveil: chambres d'hiver...oú, par un temps glacial, le plaisir qu'on goûte est de se sentir separé du dehors (comme l'hirondelle de mer qui a son nid au fond d'un souterrain dans le chaleur de la terre) et, oú, le feu étant entretenu toute la nuit dans la cheminée, on dort dans un grand manteau d'air chaud et fummeux, traversé de lueurs des tisons qui se rallument, sorte de impalpable alcôve, de chaude caverne creusée au sein de la chambre même, zone ardente et mobile en ses contours thermiques, aérée de souffles que nous refraîchissent la figure et vienent des angles, des parties voisines de la fenêtre ou eloignées du foyer et qui se sont refroidies; chambres d'été où l'on aime être uni à la nuit tiède, où le clair de lune appuyé aux volets entr'ouverts jette jusque au pied du lit son échelle enchantée, où on dort presque en plein air, comme la mésange balancée para la brise à la ponte du rayon". (Marcel Proust, Du cotê de chez Swann - A la recherche du temps perdu")

Proust evidencia duas situações - de inverno e de verão - que caracterizam o clima temperado, moderado e misto, da Europa meridional que conhecemos em Portugal: uma que convida ao recolhimento e ao aconchego e outra que impele a uma mais franca abertura ao exterior.
E evidencia-o de uma forma poética que enriquece a experiência térmica adentro de uma vivência multi-sensorial, contemplando uma fina apreensão dos processos físicos, como o das trocas de calor por convecção com origem nas "pontes térmicas" activada pela "tiragem térmica" da chaminé ("souffles que nous refraîchissent la figure et vienent des angles, des parties voisines de la fenêtre ou eloignées du foyer et qui se sont refroidies")!

A sensibilidade de Proust era então e ainda hoje é incomum. O que não quer dizer que sejamos insensíveis à magia do fogo que crepita numa lareira ou ao seu poder congregador, ou ao inconforto das correntes de ar ou de uma parede fria. Acontece até que o avanço da ciência depois de Proust nos permite compreender como uma casa pode contribuir para o nosso conforto "omnisensorial" como dizia Richard Neutra que, há mais de meio século, fazia assim a transposição para a arquitectura do que então já se sabia sobre a fisica das trocas de calor associada à fisiologia da termoregulação:

O arquitecto que coloca um sofá integrado na construção, com uma parede de betão de um lado, um envidraçado do outro e um lambril de madeira por detrás do sofá, estabeleceu um definido padrão de perdas de calor.
Devemos ter presente que as várias partes do corpo não são igualmente sensíveis ás perdas de calor: a planta do pé e a região dorsal são mais sensíveis do que, por exemplo o nosso peito ou a cabeça. A cabeça, por seu turno, tem nas trocas radiativas um comportamento muito diferente do que tem, digamos, a nossa palma da mão.



E concluia Richard Neutra no seu "Survival through design":
Pode-se logo à partida, desenhar uma sala, a sua orientação e a selecção dos materiais, de tal modo que as perdas de calor, a radiação e a movimentação do ar, sejam partes relevantes do estudo. Desta forma, pode-se alcançar uma diversidade mais rica e gratificante do que quando o projecto se preocupa apenas com a percepção visual e ignora outros potenciais objectivos sensoriais.

Proust e Neutra convergem na experiência multisensorial do lugar, mas divergem na poïesis: a imaginação de Proust divaga num carregado interior novecentista a que os arquitectos como Neutra contrapõem a transparência. Transparência que, na sociedade moderna, adquire uma dupla conotação estética e ética, associada ao higienismo então propagandeado por médicos como o Dr. Philip Lovell nos Estados Unidos e o Dr. Pierre Winter na Europa, bem próximos de Neutra e Corbu.
Richard Neutra que, de modo nenhum menosprezava a experiência visual, como se vê nas imagens das suas icónicas casas californianas que preparava cuidadosamente com Julius Schulman assinala, no passo que se transcreve, o ponto fraco da sua formação "beaux arts" que tanto o decepcionou, como explicitamente refere em "Survival Through Design": O formalismo visualista do "arquitecto euclidiano"... que ainda está entre nós!
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Na primeira imagem o quarto de Marcel Proust (fonte), na segunda a sala da Singleton House, LA/California (fonte), um projecto de Richard Neutra (1959) em que me parece ser legivel a disposição acima referida pelo autor.

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